quarta-feira, 26 de novembro de 2008

XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra toda fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...



Retirado de: Poesia Completa de Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa. - São Paulo: Companhia das Letras. 2005

Esse é meu poema favorito de "O guardador de rebanhos" de Alberto Caeiro heterônimo de Fernando Pessoa.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O blog do português

Ele é um grande escritor, sem dúvidas um dos meus favoritos. Anda a escrever num blog, lá coloca suas opiniões sobre os mais diversos assuntos e pontos de vista que considero geniais. Lendo-o achei esses dois pequenos textos muito interessantes! Com vocês, José Saramago.


Dogmas


Os dogmas mais nocivos nem sequer são os que como tal foram expressamente enunciados, como é o caso dos dogmas religiosos, porque estes apelam à fé, e a fé não sabe nem pode discutir-se a si mesma. O mal é que se tenha transformado em dogma laico o que, por sua própria natureza, nunca aspirou a tal. Marx, por exemplo, não dogmatizou, mas logo não faltaram pseudo-marxistas para converter O Capital em outra bíblia, trocando o pensamento activo pela glosa estéril ou pela interpretação viciosa. Viu-se o que aconteceu. Um dia, se formos capazes de desfazer-nos dos antigos e férreos moldes, da pele velha que não nos deixou crescer, voltaremos a encontrar-nos com Marx: talvez uma “releitura marxista” do marxismo nos ajude a abrir caminhos mais generosos ao acto de pensar. Que terá que começar por procurar resposta à pergunta fundamental: “Por que penso como penso?” Com outras palavras: “Que é a ideologia?” Parecem perguntas de pouca monta e não creio que haja outras mais importantes…



Palavras

Felizmente há palavras para tudo. Felizmente que existem algumas que não se esquecerão de recomendar que quem dá deve dar com as duas mãos para que em nenhuma delas fique o que a outras deveria pertencer. Assim como a bondade não tem por que se envergonhar de ser bondade, também a justiça não deverá esquecer-se de que é, acima de tudo, restituição, restituição de direitos. Todos eles, começando pelo direito elementar de viver dignamente. Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, daria o primeiro lugar à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade. Porque a bondade, por si só, já dispensa a justiça e a caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Feitos de que?

De que são feitos os sonhos?

Será que das idéias mirabolantes,
dos desejos ou talvez o anseio
pelo fim das angústias?

A realidade, é feita de que?

De brutalidades, desilusões,
ou apenas
do desejo estupido de ser?

Do que somos feitos?

Carne, sensações e ossos
ou simplesmente
de sonhos e realidades
combinados em proporções estranhas?

E tudo isso, para quê?


( Avisei que esse lugar seria estranho! rs )

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Viva o Zé!

Quinta-feira passada fui ao sesc ver o fim da trilogia e meu primeiro filme sobre Zé do Caixão, "A Encarnação do Demônio" que é dirigido e interpretado por José Mojica Marins. Gostei muito do filme, que não deve em nada à produções gringas, e mostra uma personalidade única. Muito me agradou a entrevista feita com o diretor depois da apresentação da fita , como ele mesmo fala.

Nessa entrevista José Mojica nos contou sobre seu amor pelo cinema, em especial o de terror, sobre como fez seu primeiro filme aos 10 ano
s de idade (!) e de como foi dura sua vida fazendo cinema: a dificuldade em conseguir investimento, o desperdício dos novos talentos, o desdém de governantes para com a sétima arte, as dificuldades técnicas de outrora, em como ele preferiu utilizar nesse longa os "efeitos reais" como ele chama (as baratas e a cena da atriz saindo de dentro de um porco são feitas sem efeitos computacionais), seus novos projetos, enfim um pouco sobre os 60 anos de alegrias e sofrimento em prol do cinema no país. (Fiquei impressionada em como um homem com 72 anos ainda tem tanta energia e vivacidade!)

Após a entrevista houve um coctel à moda Zé do Caixão com pães em forma de corpos ensanguentados, doces em forma de vermes e garçons com uniformes sujos e maquiagem macabra, tudo muito interessante e pitoresco. Coloquei-me a pensar em como, finalmente, depois de todos os sacrifícios, o homem é reconhecido nacional e internacionalmente ainda em vida pelo seu grande trabalho como diretor, produtor e roteirista. Fiquei com a pergunta na cabeça: Será que a postura do Brasil está mudando?

domingo, 16 de novembro de 2008

O contador antropomórfico


"A diferença entre os surrealistas e eu, é que eu sou surrealista."
Salvador Dalí Salvador Dalí Salvador Dalí Salvador Dalí


Achei isso um pouco (muito) arrogante quando li na capa interna do livro sobre Salvador Dali que ganhei, porém feita à leitura descobri que era verdade.


Em outra ocasião (depois de ler mais sobre o assunto) escrevo um texto sobre ele, por hora quero falar sobre a gravura que escolhi para ser a cara de meu blog.


O contador antropomórfico”, 1936. As gavetas do inconsiente segundo as teorias do bom doutor Freud. São espécies de alegorias da psicanálise, que ilustram uma tendência para aspirarmos o odor narcísico de cada uma de nossas gavetas.


Por mais que isso pareça loucura, todos temos de escavar nossas gavetas.


Texto destacado foi retirado do livro "Salvador Dalí" da editora Taschen.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Idioma

Acho que poucos já pararam para pensar em como é sonoro e belo nosso idioma, em como há palavras que podem expressar quase todos os sentimentos, em como somente os falantes do português (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e em cerca de outros 18 países) conhecem a saudade, em como somos e estamos em diferentes tempos verbais e conhecemos o masculino e feminino em todas suas nuances.


Sou feliz por ter nascido no Brasil pois essa terra, apesar de seus muitos problemas, me proporcionou algo que talvez nenhuma outra poderia: conhecer em seu berço lingüístico autores como Machado de Assis, Padre Antônio Vieira, Augusto dos Anjos, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Clarisse Lispector, José Saramago, Fernando Pessoa entre muitos outros.


E por mais que seja “new” cantar em inglês, “élégant” ler poemas em francês e “vergnügt” dizer xingamentos em alemão, nunca outra língua será tão completa como a nossa.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Cântico negro

José Régio

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

Conheci esse texto a pouco tempo, mas gostei muito!

Ainda sobre a individualidade

Sábado à tarde, o filho sai do quarto para tomar água e o pai lhe fala:


Você não pode ficar tanto tempo dentro de casa; tem de ir para a rua, ver o movimento, as pessoas, andar por aí, conversar com outras pessoas.


Por quê?


Porque se ficar sempre com as mesmas pessoas, será considerado um chato que não conversa, antipático e que se acha melhor que os outros.


Não gosto de conversar com qualquer pessoa, não me considero melhor, apenas diferente. Não preciso que todos gostem de mim, só preciso que as pessoas de que gosto saibam disso e que se quiserem gostem de mim também. Não me importo com o que pensam a meu respeito.


Não se importa que as pessoas não gostem de você?


Não. Só me importo com as pessoas de que gosto.


Claro que se importa! Eu sei que se importa, ninguém é feliz sabendo que não é querido por todos!


Eu não ligo. Alias quero que as pessoas de que não gosto saibam disso, para que não gostem de mim também, assim nunca preciso falar com elas.


Você é muito teimoso!

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Sobre a individualidade

Ante-sala do consultório, senhoras conversam:


Meus filhos teêm-me dado um trabalho! Um vive perdendo o emprego, depois que terminou o colégio não quis mais saber de estudar, o pai queria tanto que ele fosse engenheiro. Ele acha que vai poder morar conosco até os trinta anos. O outro nunca pára em casa, quando está fica o tempo todo trancado no quarto estudando, não conversa, nunca me conta nada é como se ele nem estivesse lá.


E o meu então, não quer assumir o meu neto. É verdade que ele sempre manda o dinheiro da pensão, mas tem que gostar da criança, levá-lo em casa para eu ver como ele está. Também, a moça é uma paspalha não conseguiu fazê-lo casar, quando engravidei casei antes mesmo da barriga começar a aparecer.


Eu depois que casei demorei cinco anos para ter a minha, ela chorou até o sexto mês sem parar. Agora que está na escola, não gosta de estudar, fica cantando aquelas músicas horrorosas, vive comendo doces, está ficando cada vez mais gorda. Quando chegar a adolescência não sei como vai ser.


Entra uma moça com ar jovial, elas a escutam conversar com a recepcionista:


Seus exames pré-operatórios chegaram, poderá marcar para qualquer dia dessa semana.


Que ótimo, vou aguardar. Obrigada.


A senhora mais velha, e por isso com maior permissão social, senta-se ao lado da moça que acabará de chegar e lhe pergunta:


Puxa, uma moça tão jovem. Vai operar por que?


Obrigada pelo tão jovem. Agora que já passei dos trinta vou fazer esterilização.


E quantos filhos têm?


Nenhum. E nem eu ou meu marido desejamos, somos muito felizes só nós. Caso um dia mudemos de idéia preferimos adotar uma criança.


Que absurdo! Eu sei que você quer ter, converse com seu marido. Nenhum casal é feliz sem filhos, eles são a materialização do amor do casal. Você nunca será feliz se não der um ao seu marido!


Eu já sou feliz, não vejo motivos para colocar mais uma criança nesse mundo. Acho um projeto muito egoísta. Vou ter um filho para moldá-lo a minha forma? Projetar meus sonhos frustrados sobre ele? Não vou além de detonar meu corpo esperar que ele saía de casa para ter paz novamente.


A senhora levanta-se vermelha e volta para o grupo de onde saiu. A moça ri discretamente.


Vocês viram isso! Onde já se viu ser casada e não querer ter filhos, egoísmo é não querer gerar uma criança. Eu jamais seria feliz sem os meus meninos, eles são a melhor coisa que me aconteceu.


As outras concordam, porém pensam se seria melhor não terem tido os filhos.