domingo, 2 de novembro de 2008

Os Três mal-amados

Já conheci muitas pessoas inteligentes e talentosas, mas nunca conheci pessoalmente um gênio. Vi muitos bons artistas também, porém, existem outros que extrapolam essa fronteira e encontram a essência do ser e do belo, eles são os tão falados gênios (morro de ódio, admiração e inveja dessa gente). São pessoas que vêem além das outras e sabem mostrar isso de uma forma única e seja por meio de pintura, escultura, cinema, teatro ou literatura são capazes de emocionar e fazer pensar qualquer um que esteja disposto dar-lhes ouvidos e olhos.


E gostaria de colocar aqui algumas obras que, julgo eu, são geniais. A primeira delas é a fala do João de “Os três mal-amados” do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto.



João:


Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui ao meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?


Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul quem envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.


Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?


Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?


Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).


Teresa está aqui, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?


O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda este gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...


Talvez Teresa... Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?


Posso esperar que esse oceano seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua poesia?


O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É impossível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes no mesmo mar?


Donde me veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.


Retirado de: Serial e antes/ João Cabral de Melo Neto. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997


Considero esta a mais bonita das falas dos três mal-amados (embora todos prefiram a fala de Joaquim). Espero que um dia o João Cabral seja reconhecido como grande poeta em língua portuguesa assim como Camões ou Fernando Pessoa.

Um comentário:

André Rocha disse...

João Cabral é covardia! É "Terceiro Dan", faixa preta!rs...também gosto muito desse texto...fantástico!Beijos!